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Me lembro bem da primeira vez que o interfone tocou. Era domingo e o dia tinha acabado de nascer. Não que havíamos notado, afinal nem chegamos a dormir. Entre olheiras, olhamos um para o outro como quem se questiona o que poderia estar acontecendo para que aquele ser tão pequeno chorasse tanto e relutasse tanto a dormir. Enquanto eu embalava nosso bebê e tentava confortá-lo da quinquagésima maneira diferente daquela noite, meu marido tirou o interfone do gancho e permaneceu em silêncio durante algum tempo antes de colocá-lo novamente no lugar.

Seu rosto não conseguia esconder a indignação e, mesmo assim, ele – tão admirável e nobre que é – permaneceu calado enquanto ouvia as impropriedades que nos eram vomitadas por alguém que “tinha o direito de dormir no final de semana e estava sendo atrapalhado pelo choro de um bebê”. Mal sabia essa pessoa – ou até sabia whatever – que não dormíamos há 2 meses e meio, idade que o nosso filho tinha na época. Mal sabia essa pessoa que havíamos acabado de diagnosticá-lo com APLV (alergia a proteína do leite de vaca) e, finalmente, tínhamos algumas explicações para os choros intermináveis, vômitos em jato, urticárias e desconfortos que vinham apertando nosso coração a cada dia. O prognóstico não era animador. Até ele apresentar efetiva melhora poderia demorar de 4 a 8 semanas enquanto meu corpo se desintoxicava de todos os alimentos alergênicos que estavam lhe causando mal. Isso se não escapasse algo em um rótulo confuso de produto industrializado. O desafio já era enorme por si só.

Lembro que ao ouvir o interfone ser colocado no gancho, amarrei o bebê no sling, prendi o cabelo de qualquer jeito, coloquei meus óculos escuros e sai andando pela rua me debulhando em lágrimas a caminho de um parque próximo da minha casa. Casa da qual eu e meu filho fomos expulsos. Sim, naquela manhã tiraram de mim o privilégio de chamar minha casa de lar. Desrespeitaram meu puerpério, feriram minha alma – que já estava mais do que abalada e fraquejada. Depois de algumas voltas no parque, ele conseguiu finalmente dormir, enxuguei as lágrimas e parti para uma temporada na casa dos meus pais. O tempo passou e ao final das oito semanas sorrisos voltaram a estampar o rosto do Gab, mas as noites continuavam interrompidas.

A segunda vez que o interfone tocou foi ainda mais inesquecível do que a primeira. Era madrugada de domingo para segunda-feira. No momento que o interfone tocou Gabriel dormia, nós não. Ele estava com febre, tosse, nariz carregado e – consequentemente – acordando de hora em hora. Nós estávamos estáticos e abismados sentados no sofá ouvindo as palavras e ameaças impronunciáveis que vinham do outro andar. No interfone, era o porteiro. Na portaria, era a polícia. Paulo vestiu às pressas qualquer roupa e saiu pela porta arrastando o chinelo. Eu, novamente, de joelhos suplicando que o protegesse de todo mal e pedindo que a justiça fosse feita. Ouvi os berros inconformados quando o interfone tocou no outro andar requerendo a sua presença na portaria. Assim como também deve ter ouvido o terceiro vizinho que chamou a polícia. O caso de polícia logo se resolveu quando descobriram que o motivo do chamado era o choro de um bebê e a reação inexplicável de uma pessoa gritando e xingando pela janela. Naquele mesmo dia, nosso filhinho foi internado com pneumonia e nossa vizinha pôde finalmente ter a semana de sono tranquilo que ela tanto desejava.

Quando se dizia que é preciso uma aldeia pra se criar uma criança aposto que não se podia imaginar que em tempos de concreto, cidades superpovoadas e paredes finas de drywall o choro de um bebê a noite – por mais intermitente que possa ser – poderia despertar tamanha agressividade. Em tempos de ofensas lançadas pelas janelas de navegadores e protegidas pelas paredes de redes sociais, não seria de se estranhar que esse mesmo comportamento extrapolasse para as janelas do meu prédio e ultrapassasse as paredes finas do quarto do meu filho. De lá pra cá, graças a Deus, a cada noite nossa fé nas noites bem-dormidas do nosso filho tem aumentado. Não posso dizer o mesmo, infelizmente, da nossa fé na humanidade. É por essas e outras que o poeta deve acreditar que não existe amor em essepê.